sábado, 4 de junho de 2011

5º Fichamento

O DIAGNÓSTICO ANTECIPADO DE DOENÇAS GENÉTICAS E A ÉTICA

Professor Volnei Garrafa,Artigo publicado originalmente na Revista O Mundo da Saúde, São Paulo - SP, v. 24, n. 5, p. 424-428, 2000 – Republicação autorizada pelo autor.

"Apesar de situações bioéticas persistentes (como oaborto e a eutanásia) continuarem dividindo o mundo em posições opostas e quase inconciliáveis, e em que pese as novas técnicas reprodutivas terem ocupado os principais espaços da mídia internacional na década passada (no que se refere às situações bioéticas emergentes), a pauta bioética do início do século XXI aponta dois temas que concentram apreferência das atenções dos pesquisadores, estudiosos, grande imprensa e demais interessados na matéria. Os temas são: a genética (incluindo o projeto genoma humano),pelo lado das novidades; e, surpreendentemente, a saúde pública e coletiva, pelo lado dosvelhos problemas que - se o atual estado de coisas permanecer inalterado - não serão resolvidos tão cedo de modo satisfatório pela inteligência humana."
"O domínio de técnicas relacionadas com o melhor conhecimento do DNA, passou a possibilitar o diagnóstico pré-natal de problemas genéticos e a identificaçãodos portadores de genes de risco, ou seja, genes sadios, mas que podem dar origem a criança com alguma doença genética. Se por um lado esses exames ou teses preditivos(antecipados) permitem o aconselhamento a casais que, devido a seus antecedentes familiares ou individuais, correm o risco de gerar uma criança deficiente, por outro criam uma série de questionamentos éticos, desde a indicação de um "aborto terapêutico" até uma futura limitação de um cidadão na sua atividade laboral. Algumas doenças relacionadas com certas mutações genéticas, como a betatalassemia (uma forma de anemia hereditária que incide em certas populações mediterrâneas), a anemia falciforme (que ataca preferencialmente negros e que por longo tempo causou problemas em Cuba) ou a doença de Tay-Sachs (que causa graves distúrbios neurológicos entre judeus da América do Norte e Israel), são exemplos positivos de como testes confiáveis, simples e baratos podem trazer resultados positivos. O que não se pode é generalizar, seja no que se refere a testes de aplicação individual ou coletiva, seja no período pré-natal ou na idade adulta."
"O perigo que ronda todo esse contexto é a transformação de um "risco genético" na“própria doença”, alterando perigosamente o conceito de "normal" e de "patológico", tão bem esclarecido por Ganguilhem, com suas conseqüências indesejáveis de toda a ordem,especialmente sociais."
"Afora algumas poucas doenças em que o gene, isoladamente, desenvolve a patologia de modo inexorável (como no caso da doença ou coréia de Huntington), são raras as situações onde não ocorram interações entre os genes e o meio ambiente. Trata-se, portanto, além de uma análise adequada do que seja ou não "normalidade", também de uma decisão com relação à "valores". O aprofundamento e a melhor interpretação de questões com esta, exigem cada vez mais a atenção da bioética."
"Um livro publicado nos EUA sobre pontos de vista opostos em bioética, trata exatamente das dificuldades acima apontadas. Em um dos capítulos, Catherine Hayes, diretora de uma entidade norte-americana que congrega famílias que possuem membros portadores da doença de Huntington, defende ferrenhamente os benefícios individuais e familiares dos testes preditivos."
"Posição oposta a essa é definida no capítulo seguinte da mesma obra pela procuradora pública Theresa Morelli, cujo pai teve um diagnóstico presuntivo (provável) da doença de Huntington. Embora ela não tivesse sintoma da doença e sequer tivesse realizado exames preditivos, seu nome foi automaticamente incluído na "lista cinza" das companhias norte-americanas de seguro-saúde como possível portadora do problema. O simples diagnóstico do seu pai (que depois se mostrou equivocado, ou seja, ele não era portador da doença) foi estampado na capa do seu prontuário, no banco de dados nacional das poderosas companhias seguradoras sediado em Boston, alijando-a da possibilidade de acesso a qualquer tipo de seguro-saúde. Esse incidente levou a senhora Morelli a procurar entidades de direitos humanos, denunciando com vigor a utilização discriminatória dos testes genéticos pelos empregadores e companhias seguradoras."
"O pesquisador Christian Munthe publicou em 1996, através do Centro de Pesquisas Éticas de Gotemburgo, um interessante estudo intitulado "Raízes morais dos testes prénatais", que trata do desenvolvimento histórico do tema na Suécia. O autor baseia sua análise em três perspectivas. A primeira, denominada "visão oficial", é aquela tipicamente abraçada pelos médicos especialistas daquele país, na qual o diagnóstico pré-natal é a base para o aconselhamento genético; esta perspectiva não dá espaço à coerção (no sentido da definição de um possível aborto, por exemplo), pressões ou manipulação, caracterizando-se pelo respeito à autonomia das pacientes. A segunda é chamada de "meta preventiva", e tem como propósito prevenir o nascimento de crianças com defeitos genéticos sendo, portanto, muito controvertida do ponto de vista filosófico e moral. A terceira é denominada de "motivos econômicos", e analisa os testes pré-natais a partir da ótica da redução de custos, que significa para a sociedade evitar crianças com desordens genéticas."
"Lucien Sfez é um cientista social francês que publicou um interessante livro chamado "A Saúde Perfeita - crítica de uma nova utopia". Para ele, as mudanças genéticas possíveis - vegetais, animais e humanas - alteraram o transcurso da história. A história, que tinha uma narrativa longa, foi substituída por narrativas curtas e fragmentadas. Estamos, portanto, longe do "fim da história" desenhado por Francis Fukuyama. A engenharia genética nos devolve uma nova história; reinventa e renova a história. O perigo, no entanto, reside no fato da técnica vir a dominar o mundo, a sociedade, a natureza, sem mediação científica e sem conflitos sociais."
"Neste sentido, um exemplo paradigmático é exatamente aquele do uso cada dia maior de testes genéticos na vida cotidiana das pessoas. Questões como o aborto, passam a ser colocadas não somente nos casos de más-formações, mas também de anomalias cromossômicas. Para os adultos, surge a questão da notificação do defeito (ou "doença") genético. A notificação deve ser feita somente ao indivíduo portador de gens "ruins", ou também à sua mulher, filhos, irmãos e demais parentes? Em particular nos Estados Unidos, as conseqüências disso tudo são da maior seriedade social, pois não somente empregadores e empresas seguradoras, mas também escolas e mesmo cortes de justiça, buscam respostas de alta eficácia, com custos mais baixos e menores riscos. E utilizam, cada vez mais, a técnica dos testes."
"Desta forma, os testes preditivos passam a ir além dos procedimentos médicos, criando verdadeiras categorias sociais, empurrando o indivíduo para quadros estatísticos. Os problemas sociais são reduzidos às suas dimensões biológicas. As doenças mentais, a homossexualidade, o gênio violento ou o próprio sucesso no trabalho, são atribuídos à genética. As dificuldades escolares - antes explicadas pelas desigualdades culturais ou nutricionais - são hoje imputadas a desordens psíquicas de origem genética, excluindo quase completamente os fatores sociais com elas relacionados. Após testes pré-natais, companhias seguradoras ameaçam não cobrir as despesas médicas de uma criança cuja mãe teria sido alertada que um dia esta criança seria vítima de um problema genético."
"Concluindo, devo dizer que o controle social sobre qualquer atividade de interesse público e coletivo a ser desenvolvido, é sempre uma meta democrática. Nem sempre ele é fácil de ser exercido. No caso da bioética, da genética e, especificamente, dos testes preditivos, a pluri-participação é indispensável para a garantia do processo. O controle social – por meio do pluralismo participativo - deverá prevenir o difícil problema de um progresso científico e tecnológico que reduz cidadão a súdito, ao invés de emancipá-lo. O súdito é o vassalo, aquele que está sempre sob as ordens e vontades de outros, seja do rei ou de seus opositores. Essa peculiaridade é absolutamente indesejável em um processo no qual se pretende que a participação consciente da sociedade mundial adquira papel de relevo. A ética é um dos melhores antídotos contra qualquer forma de autoritarismo e de tentativas de manipulação."

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