A genética em transformação: crise e revisão do conceito de gene
JOAQUIM, Leyla Mariane; EL-HANI, Charbel Niño; Sci. stud. vol.8 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2010. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências; Universidade Federal da Bahia; Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil.Professor Doutor do Departamento de Biologia Geral; Instituto de Biologia,Universidade Federal da Bahia; Pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica, CNPq, Brasil.
O conceito de gene tem desempenhado um papel central na biologia desde sua introdução, no início do século xx. Contudo, ao longo do seu desenvolvimento histórico, o conceito tem sido objeto de controvérsia crescente, inicialmente na filosofia da biologia e, depois, na própria biologia. Desafios ao conceito de gene têm levado a uma dificuldade de preservar o chamado conceito molecular clássico, de acordo com o qual um gene é um segmento do DNA que codifica um produto funcional (polipeptídeo ou RNA).
Entre os filósofos da biologia e, mais recentemente, entre os próprios biólogos, há uma visão compartilhada de que o conceito de gene se defronta com grandes dificuldades. Este artigo discute os principais achados empíricos que levaram à crise do conceito de gene, por terem tornado evidente a diversidade estrutural do gene molecular, sobretudo em eucariotos, levando à dissolução da ideia de genes como unidades de estrutura e/ou função. Em particular, abordaremos os avanços recentes que tiveram lugar nos contextos do Projeto Genoma Humano (PGH) e da Enciclopédia de Elementos de DNA (Encode).
Abordaremos os estudos experimentais que conduziram às dificuldades enfrentadas pelo conceito molecular clássico de uma perspectiva histórica, com o intuito de entender como eles desafiaram esse modo usual de compreender o gene. É importante lembrar que os campos da genética e biologia molecular desenvolvem-se rapidamente e, portanto, acaba sendo imprescindível o tratamento de achados bastante recentes. Isso nos obriga a fazer uma história do presente, mesmo reconhecendo as dificuldades de tal tarefa.
Destacaremos dois projetos recentes que reúnem importantes achados da bioquímica e biologia molecular das últimas décadas: o Projeto Genoma Humano (pgh) e a Enciclopédia de Elementos de DNA (Encode). O pgh teve efeitos surpreendentes sobre o pensamento biológico, trazendo, em particular, suspeitas com relação à visão reducionista predominante na biologia da segunda metade do século XX, algo inesperado em um projeto que era, em boa medida, uma culminação do reducionismo.
A definição de gene encontrada no glossário associado ao pgh pode ser considerada conservadora, na medida em que constitui um claro exemplo de uso do conceito molecular clássico.De acordo com a definição, o gene é uma unidade hereditária que possui estrutura, função e localização definidas. Essa concepção sobrepõe o conceito mendeliano de unidade hereditária ao conceito molecular clássico, atualizando em termos moleculares, desse modo, uma visão sobre a existência de uma unidade básica da herança particulada que é anterior ao próprio conceito de gene, sendo encontrada, por exemplo, no uso que Mendel fez de termos como "fator". Conforme argumentaremos ao longo deste artigo, uma série de achados experimentais tornou esta definição de gene cada vez mais problemática. Contudo, o fato de que, na virada do século xx para o século XXI, encontremos a mesma definição no glossário de um projeto de tal magnitude mostra a tentativa de ainda manter a ideia da unidade estrutural e funcional, mesmo diante dos desafios à noção de tal unidade no genoma. A tendência de identificar o gene com uma unidade no DNA que codifica para alguma função tem lugar no contexto de um hibridismo conceitual que confunde as ideias de codificação, regulação e função. Defenderemos, portanto, que é evidente a necessidade de uma análise cuidadosa e de uma reformulação de nossa compreensão do conceito de gene.
Ao contrário do que podemos concluir no caso do pgh, ao menos à luz da definição de gene encontrada em seu glossário, os cientistas do Encode não ignoram a necessidade de revisão de conceitos centrais da genética, implicados pelos avanços das últimas décadas, em especial, do conceito de gene. Antes pelo contrário, eles têm feito propostas para essa revisão. Ao discutir, mais abaixo, algumas reações à crise do conceito de gene, consideramos as propostas que surgiram do Encode.
Um dos fatores que levaram à crise do conceito de gene foi a atualização da visão mendeliana dos genes como unidades no conceito molecular clássico. Nas décadas de 1950 e 1960, ao mesmo tempo em que os achados da pesquisa molecular levantavam hipóteses relevantes sobre a estrutura e o funcionamento dos genes, a noção do gene como unidade fundamental de função e herança era mantida. A justaposição dos conceitos mendeliano e molecular foi resultado do esforço para manter a ideia de unidade da estrutura e função diante dos primeiros achados da biologia molecular.
Em princípio, a distinção entre genes estruturais e regulatórios não foi tomada como um desafio de fato ao gene molecular clássico, visto que a regulação também envolve síntese proteica, não parecendo haver problemas em considerar os genes regulatórios como unidades estruturais e funcionais. Entretanto, o modelo do operon leva a questões importantes sobre a natureza, a estrutura e a função dos genes. Considere-se, primeiro, que nos operons bacterianos é produzido um único rnam policistrônico, isto é, um único RNAm para todos os genes incluídos em um operon. A tradução sequencial deste RNAm resulta, então, nos diferentes polipeptídeos.
Os desafios mais importantes ao conceito molecular clássico surgiram a partir de pesquisas em organismos eucariotos. Mesmo com todo o sucesso que a pesquisa em procariontes teve em desvendar os mecanismos de controle e regulação da célula, a partir da década de 1970 uma série de estudos mostrou que os genes em organismos eucariotos são distintos em aspectos fundamentais daqueles encontrados nas bactérias. Diferentemente do DNA das bactérias, o DNA dos eucariotos está armazenado no núcleo, onde ocorre a transcrição, enquanto a tradução do RNA originado a partir do DNA tem lugar no citoplasma, mais precisamente nos ribossomos. Essa diferença entre procariontes e eucariotos pode parecer simples a um olhar menos atento. Entretanto, ela promove um significativo aumento em número e complexidade das etapas dos processos envolvidos na ação gênica. O RNA entra em cena como um elemento atuante em diversas dessas etapas, permitindo a ocorrência de uma imensa gama de processos de controle celular que incidem sobre rnas. Nas seções seguintes, discutiremos achados da pesquisa em eucariotos que resultaram em anomalias em relação à visão do gene como unidade estrutural e funcional no DNA.
Atualmente, é clara a necessidade de uma análise e reformulação cuidadosa desse conceito central para o pensamento biológico. Muitos filósofos da biologia e biólogos, na tentativa de organizar a variedade de definições de gene, apresentaram visões interessantes a respeito desse conceito e de seu papel no conhecimento biológico, assim como propostas de revisão conceitual, que também abordaremos neste artigo. Concluímos que uma definição única de gene não é possível ou necessária. Ao contrário, o pluralismo de modelos e conceitos é provavelmente mais poderoso, desde que os domínios de cada conceito ou modelo sejam claramente definidos.
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